Romênia Oliveira de Souza
A cidade é formada tanto por um conjunto de barreiras e edificações, forma urbana arquitetural (urbs/ville), quanto por uma entidade política definidora das associações realizadas entre seus habitantes (civitas/cité). Como objeto, contém elementos propiciadores de produção e consumo nos seus diversos equipamentos. Como sujeito, influencia seus habitantes e é por eles influenciada. A dialética da urbanização e da transformação social funciona, constantemente, ao redor das pessoas, à medida que se vive, constrói, trabalha, compra, interage e circula pela cidade. A vida cotidiana cria formas, dinâmicas, conteúdos favoráveis à análise da vida social, utilizadora de normas e valores contraditórios, conforme as racionalidades do capitalismo (acentuando o pensamento operacional e utilitarista para além das relações produtivas) e dos citadinos (com suas cosmologias e percepções). O individualismo e o consumismo cotidianos transparecem na morfologia urbana, na exuberância da arquitetura do consumo e nas práticas sociais. Ao tempo que a globalização econômica cria expectativas de homogeneização de hábitos e estilos de vida, substituindo metanarrativas evolucionistas modernizadoras e suprimindo práticas sociais contrárias aos interesses que a servem.
Mas a cultura não é um fenômeno superestrutural, exógena ao indivíduo, ulterior e determinada por relações produtivas. As forças materiais são qualificáveis conforme mediações efetuadas nos distintos esquemas culturais, haja vista cada humano sobreviver de maneiras peculiares, conforme construções de gêneros, de classes sociais e dos vários grupos aos quais se insere; e não como organismos biológicos agregados. Mesmo o capitalismo, pretensamente pragmático, não escapa a esta constituição cultural, pois toda produção, ainda que agenciável pela forma-mercadoria e pelo valor de troca, tem valores de usos cujas compreensões dependem de sistemas signitivo-culturais com propriedades concretas. A cidade, obra de arte humana por natureza, é um desses produtos com valores de uso e de troca mediados pela cultura e pelo mercado.
Enquanto texto, a cidade é uma poderosa narração cruzada de significados; uma descrição de quem a constrói e a modifica cotidianamente; uma injunção a imprimir comportamento. Enquanto discurso, está saturada de poder e mantém relações estreitas com saberes produzidos pela educação capitalista espacial e nela divulgados. Todo processo educativo, curricularmente estruturado, é orientado pelas demandas de mercado, pelo conhecimento útil, e isto afeta as ciências que estudam e atuam sobre a cidade e o urbano. Por isso, as leituras interpretativas dos textos tecidos com as múltiplas percepções e histórias dos sujeitos ressaltam a existência de cidades diversas numa só. E para lê-las, criticamente, é preciso treinar e mudar de paradigma.
Num momento em que a educação é redefinida por novas tecnologias, com informações difundidas sem apreciação a inundar os espaços físicos e mentais, quaisquer alterações profundas implicarão em crises construtivas do próprio sistema educativo. A cidade se enquadra no discurso pedagógico defendido por teóricos que compartilham a ideia de educação permanente, heterogênea, integradora, holística, global, horizontal e temporal do processo educativo; valendo-se de recursos terminológicos legitimadores de instituições e meios não escolares. Se há educação, há currículos estabelecedores de conhecimentos ‘válidos’, há pedagogias transmissoras destes e há avaliação. Não é processo neutro e nem tudo que ocorre, neste meio tempo, está explícito nos currículos. Além disso, o oficial é planejado institucionalmente para ser trabalhado nas diferentes disciplinas, conteúdos, didática, avaliações, segundo legislação educativa. No caso da cidade, está organizado para atingir o objetivo de formar sujeitos ideal ou socialmente desejados. Já o currículo oculto é constituído por aspectos ambientais que contribuem para aprendizagens sociais tidas como relevantes. O currículo do urbanismo social amplia possibilidades ao trazer o plural de cidades: os territórios díspares, o atropelo de direitos, as segregações, a cultura, a saúde, o emprego, o dinheiro, a cidadania, a democracia, a falta de tudo isso. É um grande desafio intelectual. É também a cidade desejada, imaginada, vivida. Os currículos da cidade são, ainda, as possibilidades de desconstrução crítica dos seus textos e de subvertê-los com outros olhares e outras leituras. A cidade exemplifica valores através de sua organização, de suas prioridades, das atitudes de seus habitantes. O urbanismo revela-os, assim como aos cidadãos desejados. Os serviços ofertados constituem a alma da relação entre administração pública e população. E as propostas educacionais surgem dos acordos entre instituições, diferentes agentes e recursos, pois a educação é um instrumento sociocultural imprescindível para a coesão comunitária e pessoal. Desta forma, o planejamento urbano, a cultura, os centros educativos, os desportos, as questões ambientais, de saúde, as econômicas e orçamentais, de mobilidade e viabilidade, de segurança e dos distintos serviços, dos meios de comunicação, etc. contêm e incluem valores, conhecimentos e competências vetores de educação para a cidadania.
Portanto, quando falamos em cidade educadora nos referimos a um novo paradigma cujo núcleo constitui o conhecimento, a consciência e o desenvolvimento destes vetores presentes nas políticas e nas atuações, em todos os setores e na avaliação dos seus impactos. A relação educação-cidade possui três dimensões: 1.ª) a cidade como detentora de recursos educativos (o aprender na cidade) sob a forma de patrimônio histórico, cultural, artístico, arquitetônico, econômico, social e natural; 2.ª) a cidade como agente informal de educação (o aprender da cidade), com as ruas veiculando mensagens prosaicas e profundas, com conteúdos bons e ruins dispersos, não seletivos, sem ordem nem hierarquia epistemológica; e 3.ª) a cidade como conteúdo educativo (o aprender a cidade), relacionado ao conhecimento informal gerado pelo meio urbano e sobre ele próprio, sem intermediação de educadores profissionais, instituições pedagógicas ou processos formalizados de treinamento. Toda cidade educa, mais uns que outros habitantes. Entretanto, a aprendizagem nela gerada tem muitas limitações.
Para obter estatuto de cidade educadora (e aqui me refiro ao selo concedido pela Associação Internacional de Cidades Educadoras), precisa praticar os seguintes princípios: educar na diversidade, combatendo discriminações e estendendo-se a todos os seus habitantes; encorajar e propiciar diálogos intergeracionais via projetos comuns e partilhados; planejar, gerir e avaliar políticas municipais amplas, inspiradas em princípios de justiça social, civismo democrático, qualidade de vida; exercer com eficácia as competências em matéria de educação formal, não formal e informal, inovadora e transversalmente; disponibilizar informações sobre a situação e as necessidades dos cidadãos; encontrar, preservar e apresentar sua identidade pessoal e complexa, valorizando seus costumes e suas origens; ordenar o espaço físico conforme as necessidades de acessibilidade, encontro, relação, jogo, lazer e de aproximação com a natureza; fomentar a participação cidadã crítica e corresponsável.
Dotará a cidade de espaços, equipamentos e serviços públicos adequados ao desenvolvimento pessoal, social, moral e cultural; garantirá qualidade de vida, educação e saúde; projetos e políticas serão objetos de reflexão e de participação social; crianças e jovens receberão atenção especial em ofertas culturais, recreativas, informativas, sem intermediários expondo suas demandas; as famílias receberão formação para ajudar seus filhos a crescerem e apreenderem a cidade e para que os corpos de segurança e proteção civil atuem em conformidade com esses projetos; oferecerá oportunidades de participação em atividades sociais, sindicais e empresariais; atentará aos mecanismos de exclusão e marginalização, desenvolverá políticas afirmativas e se ocupará dos imigrantes e refugiados, encorajando a coesão social entre bairros e habitantes de todas as condições; as intervenções destinadas a resolver desigualdades deverão ser múltiplas e ter visão global da pessoa; estimulará associativismo, valores e práticas de cidadania democrática.
Referencias
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