Francilda Alcantara Mendes
O Brasil é mundialmente conhecido pela grande quantidade de cursos de Direito em funcionamento em seu território. Segundo dados do Inep em 2018 já havia mais de mil e quinhentos cursos superiores em Direito em todo o país. Segundo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) já são mais de um milhão de advogados registrados, número bastante elevado e que não leva em conta todos os bacharéis em direito não aprovados ou que não realizaram o exame de ordem.
Tais dados costumam ser apontados em discussões a respeito da qualidade do ensino jurídico no país, isto porque grande quantidade de cursos de Direito em funcionamento estão distantes de ofertar aos estudantes o mínimo necessário para a aprovação no exame de ordem e/ou exercício de alguma função jurídica. O resultado disso é um profundo prejuízo não apenas para os estudantes, que terão frustradas suas expectativas de realização de uma graduação de qualidade, mas para toda a sociedade que estará servida por profissionais inaptos à solução das demandas intrínsecas à seara jurídica.
No intuito de contribuir para a solução deste problema a Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CES – CNE) elaborou um parecer que propôs a alteração da matriz curricular dos cursos de Direito no Brasil, o que resultou numa resolução do Ministério da Educação que altera as diretrizes curriculares nacionais da graduação em Direito incluindo como obrigatórios os estudos a respeito do Direito Financeiro e do Direito Digital aos graduandos em Direito de todo o país. De acordo com o CNE o Direito Financeiro é:
temática essencial à formação jurídica, também indicando o alto impacto de questões referentes ao Direito Financeiro para as contas públicas, a governança pública e a efetividade das políticas públicas, assim como pelo fato do elevado índice nos tribunais para solução de conflitos nacionais e regionais referentes à área ( CNE, 2020)
A respeito do Direito Digital o Conselho Nacional de Educação considera que:
fortalecer os esforços referentes ao letramento digital e às práticas de comunicação e informação, que expressam as tecnologias educacionais e que devem permear a formação, inclusive presencial, no sentido de adotar as competências vinculadas a essas mediações, especialmente em práticas e interações remotas relacionadas ao aprendizado.
É bem verdade que as tecnologias digitais estão cada vez mais presentes na sociedade hodierna, em especial na área jurídica, onde o processo eletrônico e o uso de softawers e aplicativos para auxiliar advogados, juizes e demais profisisonais da área jurídica está cada vez mais comum. Por outro lado os princípios jurídicos da eficiência, transparência, economicidade, dentre outros exigem profisisonais cada vez mais inteirados da realidade financeira-orçamentária, sobretudo no que diz respeito ao efetivo cumprimento das políticas públicas. Neste sentido, não se questiona se foi acertada ou não a inclusão destas disciplinas nas novas diretrizes curriculares dos cursos jurídicos, mas sim o fato de que a inclusão e exigência de novos conhecimentos teóricos dificilmente solucionará a grave crise em que se encontra o ensino jurídico do país.
Neste sentido, a compreensão histórica acerca da própria existência dos cursos de Direito, criados em 1827 para a formação da elite intelectal pensante do país e apta ao exercício das mais relevantes funções do Estado necessita ser amplamente discutida e compreendida pelos estudantes, não apenas para que a tradição histórica do elitismo dos cursos jurídicos possa ser combatida, mas também para que a falácia de que os cursos de Direito permanecem como um passaporte para a assunção de cargos públicos e funções políticas possa ser desmistificada.
É necessário ainda investimento em uma formação que supere a mera técnica e o cientificismo. A crise de valores em que a humanidade está mergulhada há muito está permitindo que o ser humano evoque o pior de si: egoísmo, violência, consumismo…frustração! Uma sociedade marcada pela competitividade e degradação da natureza não será capaz de promover a ordem, harmonia e paz social que o Direito se propõe a assegurar sem que haja sujeitos humanos aptos a lutar e promover ações de solidariedade, empatia, sensibilidade, respeito…amor!
No livro Vida após a pandemia o papa Francisco defende que “ a indiferença egoísta é uma crise pior que a pandemia” e ainda que “o esforço de recuperação precisa envolver todos. Caso contrário, não haverá futuro para ninguém”. Afirmações como esta precisam ser refletidas e não se restringem ao contexto religioso, aliás nem é preciso ser teísta, para que o respeito pela qualidade de vida das gerações atuais e futuras seja um desejo que estimule a promoção de ações práticas por meio das quais o ser humano encontre harmonia em suas relações consigo mesmo, com o próximo e com o meio que o cerca.
O caminho de objetividade da ciência e seu zelo pela clareza, impessoalidade e empirismo muitas vezes fez com que o cientista esquecesse que o ser humano não cabe nos limites dos testes de laboratório e que tão arriscada quanto a falta de precisão de resultados técnicos é a falta de sensibilidade e empatia dos profisisonais que lidam com os problemas da sociedade. A este respeito é importante recordar as palavras de Jung: “conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana seja apenas outra alma humana”.
No caso do Direito, que lida diretamente com os conflitos ocasionados pela vida em sociedade, o comprometimento dos profissionais com a sadia qualidade de vida é condição sine qua non para a construção da sociedade livre, justa e solidária apregoada na Constituição de 1988. Assim, o paradigma da sustentabilidade, em muito pode e deve contribuir para um caminho de sensibilização, humanização e amorosidade, se de fato, estivermos dispostos a contribuir para que os estudantes de direito não apenas passem em concursos públicos ou exerçam a advocacia, mas admitam para si o dever de fazer do mundo um lugar melhor para se viver.
A escolha pela ética sustentável não substitui o zelo pela técnica nem tampouco o aprofundamento teórico e dogmático no estudo do Direito, pelo contrário, sem o arcabouço normativo e principiológico é impossível operacionalizar o Direito e resolver as demandas sociais. Assim, ampliar o debate sobre ética, história, filosofia, arte, religião, moral, meio ambiente etc. dentro de cada disciplina que compõe a matriz curricular dos cursos jurídicos não prejudica o domínio desses saberes, mas fortalece-os, humaniza-os e permite que a educação atinja aquele fim já defendido por Durkheim (2013) de que “nos permita buscar toda a perfeição de que nossa natureza é capaz”.
A indelével marca da educação para a sustentabilidade de compromisso com o multidisciplinar, com a ética, com o afeto, com o respeito e empatia pode ser um importante instrumento para que a educação jurídica seja ressignificada e atualizada não apenas quanto aos novos saberes técnicos que necessitam ser dominados pelos futuros profissionais do Direito, mas para o desenvolvimento da vocação ontológica do ser humano de ser mais, de ser o melhor que possa ser e assim contribuir para que a sociedade miserável em que vivemos possa enfim ser redimida.
REFERÊNCIAS
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇAO (CNE).RESOLUÇÃO Nº 2, DE 19 DE ABRIL DE 2021. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/abril-2021-pdf/181301-rces002-21/file. Acesso em: 18 de junho de 2021.
DURKEIM, Émile. Educação e sociologia. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2013.
INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Censo da Educação Superior. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-da-educacao-superior/resultados. Acesso em: 18 de junho de 2021.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB). Cadastro Nacional de Advogados. Disponível em: http://oab-sbc.org.br/cna-cadastro-nacional-de-advogados/. Acesso em: 18 de junho de 2021.
PAPA FRANCISCO. Vida após a pandemia. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2020.
Sobre a autora:
Doutora em Educação Brasileira e Mestra em Desenvolvimento Regional Sustentável pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Advogada. Professora do Curso de Direito do Centro Universitário Dr. Leão Sampaio. Servidora Pública na Universidade Federal do Cariri (UFCA). Membro do Laboratório de Estudos Urbanos, Sustentabilidade e Políticas Públicas ( LAURBS/UFCA).
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